Duelos e torturas: como funcionavam as antigas disputas judiciais?

Duelos e torturas: como funcionavam as antigas disputas judiciais?

Muito antes dos primeiros tribunais de arbitragem surgirem, as disputas judiciais entre duas ou mais pessoas eram resolvidas sob termos com leis pouco sutis. Durante a Idade Média, a intervenção divina passou a ser uma ferramenta essencial para determinar o curso de decisões legais, como uma forma de Deus impedir que medidas injustas fossem tomadas sob a verdade. Assim, vereditos de culpa e inocência determinavam-se pelo combate ou pela provação.

No passado, qualquer uma das partes poderia requerer o julgamento para, somente assim, estabelecer os termos previstos pelas duas modalidades; na provação, a inocência era provada após sessões de tortura, enquanto o combate era formalizado homem a homem e iniciava uma batalha aberta ao público. Apesar da brutalidade inerente, nenhum dos casos envolvia uma morte direta, pois ambos tinham a sugestão de culminar em desistências e de levar o resultado ao apontamento da corte e diante de Deus.

Com o distanciamento da lei da Igreja Católica Romana, códigos das tribos germânicas foram incorporados ao sistema jurídico e estabeleceram a vitória de uma das partes, por morte ou desistência, como suficiente para garantir a verdade. Essa prática permitia o uso de armas de todas as proporções — no caso do combate — e de fogo, derramamento de metal, água fervente e mais artifícios — no caso da provação —, com variações da intensidade do tratamento de acordo com o nível estabelecido para o crime cometido.

(Fonte: Getty Images / Reprodução)(Fonte: Getty Images / Reprodução)

Em alguns casos, nos quais o julgamento por provação não apresentasse resultados concretos — como no caso de fogo e queimaduras, onde ambos os lados sofriam —, magistrados inovaram e desenvolveram provas de resistência. Como exemplo, é possível apontar o levantamento da cruz, que agradou o Imperador Carlos Magno (742-814) e forçava duas pessoas que se acusaram a suportar o peso de uma peça de madeira com os braços estendidos. Como Deus estaria fortalecendo o corpo do inocente, quem caísse primeiro seria considerado culpado.

Apesar disso, essas leis não se aplicavam a todos; ricos, nobres, notáveis cavaleiros, bispos e padres da igreja estavam acima da necessidade de provar a si mesmos por meio de testes de resistência. Para eles, bastava declarar falsas as acusações, pois instantaneamente o outro lado seria condenado por perjúrio. Nesse caso, o acusado podia exigir um julgamento por combate — generalizado especialmente na Inglaterra depois do ano 1066.

A extensão do crime e o desafio por combate

Assim como acusado ou acusador, testemunhas também deviam provar seus pontos em tribunais. Esse corpo jurídico estava sujeito às mesmas condições dos principais e precisava ou corroborar com seu discurso, ou desmenti-lo. Caso corroborasse, ela era submetida ao mesmo julgamento e sob as mesmas condições; perder na provação ou no combate resultaria imediatamente na sentença determinada.

No caso do julgamento por combate, apenas homens deviam atuar e, quando não eram os principais envolvidos, as mulheres deviam ordenar combatentes externos legalmente autorizados a lutar. Em caso de marido e esposa, a lei dava vantagens para as mulheres lutarem com o homem e aumentavam suas vantagens em campo. Porém, devido a brechas no sistema, mesmo indivíduos do sexo masculino conseguiam contratar agentes de fora para não sacrificarem suas vidas. Esse ente ficou conhecido como “pistoleiro contratado”.

(Fonte: Getty Images / Reprodução)(Fonte: Getty Images / Reprodução)

Como o processo não podia ser manipulado, lutas entre homens livres passaram a ser comumente aplicados por tribunais europeus, sem deixar dúvida ou abrir interpretações sobre o vitorioso. Porém, essa formalidade estimulou conflitos e assassinatos nos reinos, onde homens brigavam entre si por quaisquer razões – especialmente por mulheres. Com isso, a reparação judicial foi aprimorada, sendo aplicada por outras regras: a expressão de jogar a luva como o símbolo de um duelo.

Carrouges vs. Le Gris: o último duelo

Neste ano, o diretor Ridley Scott (Blade Runner) lançou O Último Duelo nos cinemas e contou a história de dois pivôs do julgamento por combate: Jean de Carrouges e Jacques Le Gris. Na França medieval, Carrouges, notável soldado e conhecido por feitos extraordinários sobre propriedades e dívidas, acusou o melhor amigo, Le Gris, de traição com sua esposa e demandou um desafio por direito.

Envolvido com muitas campanhas em guerras e batalhas menores, Carrouges exigiu a propriedade do conde Pierre, membro respeitado da igreja, após se casar com Marguerite de Thibouville. Com isso, ele rivalizou com seu amigo e com o integrante do clero, resultando em uma série de desrespeitos e desconsiderações sobre seus feitos. Os antagonistas logo se juntaram para enfraquecer a influência do soldado, manipulando instituições e nomes relevantes, isolando-o da corte e da sociedade.

(Fonte: Getty Images / Reprodução)(Fonte: Getty Images / Reprodução)

Aliado de Pierre, Le Gris expandiu suas propriedades e ganhou representatividade na corte. Carrouges, então, viajou para Paris já sob o título de Cavaleiro, até que escutou rumores desagradáveis na volta para sua terra natal: Marguerite havia sido estuprada por Le Gris. Ele exigiu um julgamento por combate, mas viu Pierre exonerar Le Gris do crime. Assim, o soldado partiu em direção ao castelo do rei Carlos VI, onde a acusação seria escutada por todo o parlamento, não apenas por ele, mas também pela sua mulher.

Ambos os homens tiveram seus direitos aceitos e entraram em uma intensa disputa. Os ex-melhores amigos, agora cavaleiros da ordem, atacaram um ao outro com cavalos, lanças e escudos, até que Le Gris levou um golpe final e caiu, clamando por sua inocência. Carrouges, então, cumpriu seu dever e matou o adversário com uma adaga no pescoço. Aplaudido, ele enriqueceu às custas de sua vitória e acabou morrendo em meados de 1396, durante a batalha contra o Império Otomano.

Após o duelo, esse sistema caiu em desuso e foi amplamente desaprovado por nobres europeus. No continente, a prática foi oficialmente abolida, via decreto, em 1819.